A escassez de dólares voltou a bater na porta. Não é narrativa conspiratória, nem paranoia de macroeconômico de Twitter. É fluxo puro: está faltando liquidez no sistema. E quando isso acontece, os grandes hedge funds - especialmente aqueles que gostam de se alavancar - começam a sentir o chão dar uma leve tremida. O resultado é claro: ativos mais especulativos, ligados à questão do fluxo (criptomoedas e companhias que ainda não monetizam), acabam sofrendo bastante.

Nas últimas semanas, o diferencial entre a taxa SOFR e o Fed Funds voltou a subir. É um sinal clássico de aperto do financiamento em dólar. Quando um índice lastreado em Treasuries começa a negociar acima da taxa básica entre bancos, temos um recado: o preço do “dólar overnight” está ficando mais caro. E quando esse funding encarece, o apetite ao risco diminui. Não porque o gestor fica mais conservador, ou porque as teses estão derrapando, mas porque a matemática dos juros força essa tomada de atitude.

Ainda que o humor dos mercados siga razoável, o pano de fundo ganhou outros contornos momentâneos. Há uma economia global sedenta por capital, especialmente nas trincheiras que realmente movem progresso: tecnologia, infraestrutura e energia. Mas, para que esse filme avance, alguém (quem será?) precisa apertar o botão de “start” da liquidez.

São dois os vetores que podem reanimar os pacientes. O primeiro é o fim da paralisação do governo americano, que devolve dólares ao sistema como quem reabre uma represa. Serão bilhões voltando a fluir. O segundo é mais profundo e que pode trazer mais dúvidas: o Fed já começa a mostrar, mesmo que timidamente, sinais de que o Quantitative Tightening (QT) - o aperto do balanço - está com os dias contados. No limite, caminharemos para uma discussão sobre a necessidade de um quantitative easing mais cedo do que os modelos tradicionais indicam. Vale lembrar que alguns fatores podem ajudar essa narrativa, como por exemplo, a queda dos preços do barril de petróleo e a perspectiva de inflação mais branda à frente.

Não se trata de otimismo por aqui. É a mecânica Macro: se há carência estrutural de liquidez e ameaça ao bom funcionamento do mercado de financiamento, o Fed precisa agir. A história da última década está aí para não nos deixar mentir. E se isso acontecer, talvez o momento atual seja a janela ideal para o buy the dip.

Brasil: recordes, aplausos… e aquele pé atrás necessário

Enquanto isso, do lado de cá, o Ibovespa resolveu atropelar previsões e desenhar um novo topo histórico. Parte do mérito é real: alguns resultados corporativos vieram sólidos - especialmente dos bancos - e a inflação doméstica deu uma trégua importante. A combinação colocou mais uma peça no tabuleiro da queda da Selic, e os investidores correu antes que o BC pisque.

Mas toda vez que a Bolsa sobe sem volume, eu revivo aquela sensação incômoda de festa boa demais para ser verdade. O índice avança rápido, mas sem aquela base de sustentação que costuma ancorar movimentos mais persistentes: lucros crescentes, revisões para cima, aumento de participação de investidores institucionais.

Nada disso está acontecendo.

O que vemos é um mercado que antecipa o fechamento da curva de juros, empurra preços para cima, comemora… e deixa a pergunta no ar: quando a poeira baixar, esse fluxo ainda estará aqui?

Minha previsão para o Ibovespa no final do ano, os 144 mil pontos, já ficou para trás. E melhor assim. Prefiro estar errado para menos do que para mais. Mas, nessa hora, sempre me lembro de Seth Klarman, um dos cânones do value investing: pode ser que estejamos entrando nos “últimos 10%”, aquela fatia em que o investidor disciplinado prefere deixar na mesa a correr o risco de ser o último a sair da sala.

O desafio agora é separar alta legítima de alta por efeito de juros. E, convenhamos, esse tipo de triagem sempre parece simples depois que tudo já aconteceu.

Tech Pills: AMD: sete anos depois, ten-bagger e a história ainda não terminou

No meio dessa dança de liquidez e fluxo, vale revisitar brevemente uma tese que me acompanha desde 2018. Na época, falei pela primeira vez sobre AMD quando as ações valiam US$ 12. Hoje, passados alguns ciclos de mercado, valorização de mais de 1.800%, revoluções internas e externas, a empresa continua sendo um daqueles casos que mostram como tecnologia e execução se cruzam para transformar uma companhia.

No último conference call, Lisa Su, CEO da companhia, foi firme ao reforçar o que o mercado já começava a precificar: a AMD está entrando em um ciclo longo de expansão no segmento de data centers e inteligência artificial. O guidance fornecido - crescimento anualizado da ordem de 35% para o business total e até 60% para o braço de data center - merece a devida atenção.

E não só pelo número em si, mas pelo contexto: a AMD não quer mais ser “a segunda melhor alternativa” aos chips da NVIDIA. Quer disputar liderança em capacidade de processamento, eficiência energética e arquitetura para workloads de IA de altíssima intensidade.

Se vai conseguir? Essa é outra história. Mas posso dizer uma coisa: desde 2018, a AMD não errou o passo estratégico. Os turbilhões vieram, mas Lisa se manteve firme em seus prognósticos. E, em um setor em que errar o timing é letal, essa consistência vale ouro.

A diferença é que, agora, o mercado sabe. Em 2018, poucos acreditavam. É o tipo de assimetria que não aparece todo dia e, justamente por isso, quando aparece, é preciso tratá-la como se trata um diamante bruto.

Para fechar

Ainda estamos navegando um mundo de contradições: dólar escasso, bolsa subindo com pouca convicção, e tecnologia acelerando antes mesmo de o ciclo de liquidez virar a favor.

Enquanto os próximos capítulos não chegam, a estratégia continua a mesma: acompanhar cada movimento do funding global, mapear a rotação possível dos fluxos no Brasil e manter no radar as histórias de tecnologia que ainda têm estrada para correr.

Semana que vem seguimos desdobrando esse enredo. O mercado está nos entregando um daqueles momentos que só parecem óbvios anos depois.

Forte abraço,

João Piccioni

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